Rafael Baltresca – 20/11/2010
Ele nunca foi fã de Carnaval. Chamava a data de feriado inútil. Tinha todos os motivos e convencia qualquer um que Carnaval era uma besteira nacional, um atraso à pátria verde-amarela. Quando não tinha trabalho, ao invés de pular, jogar serpentina ou meter-se no vício do oba-oba, preferia ficar dormindo ou visitar o shopping com a recém-namorada. Passou sua vida toda analisando os carnavais brasileiros; de longe, pela tevê, mas analisando.
Notou tanta gente feliz, tantos rostos bonitos, cheios de vida. Não havia sofrimento, dor, falta de dinheiro, melancolia e sentimentos ruins nos quatro dias de festa. Concluiu: ou Carnaval é a salvação, a cura da humanidade, a fórmula da felicidade ou essas pessoas vivem uma mentira descomunal, uma vida plástica e sem sentido durante essa festa sem sentido.
No Carnaval do ano retrasado, decidiu conferir de perto o que de fato acontecia dentro do oba-oba-le-lê, como definia. Colocou seu abadá comprado de última hora, sua camiseta florida, óculos gigantes de plástico, enfiou dois quilos de confete nos bolsos e foi. Entrou na folia, pulou, dançou, pulou mais um pouco e notou que as pessoas faziam de tudo para se mostrarem para os outros que faziam de tudo para se mostrarem também.
Sentiu um aroma de falsidade no ar. Como se aquela alegria toda não passasse de fingimento, uma alucinação momentânea. Não via verdade nos sorrisos, não sentia autenticidade nos abraços e aquelas melodias "te quero", "te amo", desapareciam na velocidade dos tamborins. Voltou com mais certeza do que sempre defendeu. O oba-oba carnavalesco era outra forma de fugir da realidade. Agora ele podia falar com propriedade de um estudioso e com a verdade de um pesquisador.
Durante os meses seguintes, ao invés de continuar reclamando, ele decidiu agir. Comprou espaço na mídia, alugou um galpão, criou e começou a divulgar o "bloco da gente triste". Sua ideia era permitir que pessoas tristes fossem ao Carnaval para ser o que eram. Sem máscaras, sem mentiras, sem sorrisos falsos, sem nada. Para que não precisassem pular, o bloco da gente triste foi construído numa pequena sala isolada acusticamente, ao lado da grande festa. A sala tinha um carpete bege, paredes brancas, um bebedouro no canto esquerdo, duas mesinhas com café, bolachas água e sal, chá mate e água à vontade.
O conforto era garantido por duzentas cadeiras com encosto fofo, alinhadas, com um corredor no meio. O objetivo do idealizador era juntar pessoas tristes, com dores, melancólicas e colocá-las num lugar onde não haveria necessidade de atuar com comportamentos estranhos. Era só chegar, sentar, compartilhar sua tristeza ou, se desejar, apenas sentar e tomar uma xícara de café.
E foi assim que aconteceu. Enquanto pessoas seminuas desfilavam, pulavam e enroscavam-se com outras do mesmo nível, os integrantes do bloco da gente triste, devidamente identificados com crachás, entravam em fila indiana e iam sentando-se.
E assim passaram-se horas. Às 6 da manhã, no primeiro bloco, o da alegria, os componentes arrastavam-se no chão. Bêbados, vomitados, suados, cheirando mal e chorosos. Lembrando de suas fraquezas, tristezas e com todas as reações que uma noitada dessas podia acarretar. O bloco da gente feliz estava na lama, com dores de cabeça e arrependidos.
Já o bloco da gente triste, não. Ficaram horas e horas na melancolia e sem estímulos até que um começou a contar seus problemas para o outro, que narrou suas tristezas para a outra e, quando notaram, já haviam desalinhado as cadeiras e formado um grande círculo, onde cada um contava um acontecimento ruim de sua vida enquanto era ouvido atentamente pelo grupo. Começaram a notar semelhanças e viram que não eram os únicos que sofriam. Notaram que todos tinham problemas e que isso não era anormal.
Depois de um relato, à primeira vista, triste, um senhor lá da ponta riu. Riu porque o mesmo havia ocorrido com ele há dois dias. Todos riram juntos depois. E começaram a brincar com os problemas dos outros, das histórias surreais.
A moça do meio serviu mais café para a turma e, enquanto voltava com a bandeja cheia, fez alguns passinhos a la Michael Jackson. A turma toda caiu na gargalhada e começaram a levantar-se. Não demorou muito para mudarem o assunto para piadas reais cotidianas. Contaram fatos de suas vidas que mais pareciam anedotas - daquelas que nossos avós adoravam contar. Que delícia estava o bloco da gente triste.
Quase às 2 da manhã, alguém abriu a porta para entrar mais ar. O ar entrou junto com o som do bloco da gente feliz. Quando foi fechar, ouviu um "deixa abertooo" e deixou. A turma afastou as cadeiras e começaram a curtir o oba-oba. Dançaram Chiclete com Banana, Asa de Águia, Daniela Mercury, Ivete Sangalo. Até a campanha eleitoral do Tiririca virou samba. O moço da lateral saiu e, depois de alguns minutos, voltou com dois engradados de cerveja, vodka e umas latinhas de Coca-cola. O grito foi ouvido de longe: uhaaaaa! O bloco da gente triste estava indo de vento em popa.
E assim foi o Carnaval no bloco da tristeza. Conversaram, dançaram e curtiram até não poder mais. Uma hora antes de acabar, com caipirinhas na mão e jogando confete para o alto, dançavam e cantavam "te quero", "te amo".
Quando acabou, estavam todos no chão. Bêbados, vomitados, suados, cheirando mal e chorosos. Lembrando de suas fraquezas, tristezas e com todas as reações que uma noitada dessas podia acarretar.